Assoreado e em processo de metástase, o Velho Chico agoniza e pede socorro
Superfaturamento de obras mostra o verdadeiro interesse do Palácio e Congresso Nacional pela Transposição
Foto: SN/Osiel Amaral
Já foi o tempo em que o rio São Francisco possuía muita força e a correnteza arrastava tudo que encontrava pela frente. Esta opulência foi na época em que as cheias naturais impunham grande impulso à economia dos municípios ribeirinhos, a exemplo da grande produção de arroz vinda de dezenas de lagoas existentes na Região do Baixo São Francisco, um estirão navegável de 208 km de extensão, entre Piranhas, no Estado de Alagoas, e a foz, no Oceano Atlântico.
Para quem não sabe, o Baixo São Francisco é formado por 24 municípios de Alagoas e Sergipe. Os municípios ribeirinhos alagoanos são: Delmiro Gouveia, Olho D´Água do Casado, Piranhas, Pão de Açúcar, Belo Monte, Traipu, São Braz, Porto Real do Colégio, Igreja Nova, Penedo e Piaçabuçu.
Já na faixa ribeirinha sergipana estão localizados os municípios de Canindé do São Francisco, Poço Redondo, Porto da Folha, Gararu, Nossa Senhora de Lourdes, Canhoba, Amparo do São Francisco, Telha, Propriá, Santana do São Francisco, Neópolis, Ilhas das Flores e Brejo Grande. Para com estes 24 municípios a CHESF tem um débito impagável porque provocou um grande colapso na economia do Baixo São Francisco com o desaparecimento da produção de arroz, em consequência do desaparecimento de dezenas de grandes lagoas, prejuízo este causado pela construção de barragens.
A grande catástrofe ambiental começou a ser imposta com a construção da Usina Hidrelétrica de Três Marias, obra inaugurada em 1962. A barragem mede 2.700 metros de comprimento e forma um reservatório de 21 bilhões de metros cúbicos de água, a 2.221 km acima da foz do rio. Depois vieram as construções de outras hidrelétricas: Sobradinho (1973 a 1979), Paulo Afonso I, II e III (1954 a 1979), Moxotó (1971 a 1975), Itaparica (1979 a 1988) e Xingó (1987 a 1994).
Hoje, depois de toda esta devastação insana das matas ciliares, em nome da ganância travestida de progresso, a realidade é outra. Aliás, desde os anos de 1970, quando foi anunciado o estado de coma do caudaloso Velho Chico, o cenário mudou por completo, uma consequência, principalmente, do represamento de suas águas para a geração de energia elétrica.
Segundo um grupo de peritos especialistas em geologia, os impactos ambientais foram tantos que provocaram o desaparecimento do Povoado Cabeço, região do município sergipano de Brejo Grande, uma comunidade que ficava localizada em frente ao pontal do Peba e que era formada por nativos.
O Velho Chico, como carinhosamente é chamado pelos ribeirinhos, está passado por um gravíssimo processo de assoreamento em todo o trecho do Baixo São Francisco, onde gigantescos bancos de areia surgem a cada dia ao longo da calha e denunciam a morte iminente do rio, pois sua acelerada metástase deixou à mostra suas longas costelas arenosas.
Trechos antes navegáveis e de grandes profundidades transformaram-se em áreas muito rasas e foram invadidas por uma espécie de vegetação que fica submersa e impede a reprodução de peixes e outras espécies, além de prejudicar as embarcações de pequeno, médio e grande porte, que viajam pela hidrovia cada vez mais ameaçada de desaparecer.
As algas verdes que invadiram completamente o fundo do Velho Chico consomem o oxigênio de suas águas, provocando, assim, o desaparecimento de muitas espécies de peixes. E sem a produção natural de peixe, o pescador ribeirinho não extrai os frutos do rio para a sobrevivência dele e o sustento da família.
As algas proliferaram tão rapidamente que invadiram áreas antes muito frequentadas por banhistas e que agora não passam de grandes pontos de praia desprezados pelos frequentadores do rio.
Ao longo dos 2.830 quilômetros do “rio da integração nacional” existe uma infecção generalizada que o faz definhar lentamente sob um couro hídrico fino e enrugado, características próprias de um estado ambientalmente cadavérico.
Não bastasse todo esse quadro de destruição, o governo federal vem, de maneira insensível e autoritária, executando o letal projeto de transposição, inicialmente orçado em R$ 4,5 bilhões e depois passou para R$ 8,2 bilhões.
Na cara das autoridades ambientais, milhares de hectares de caatinga foram devastados para construção dos canais. O canal por onde começa a transposição ficou pronto, mas só pode ser operado quando as bombas começarem a puxar a água para abastecer 12 milhões de pessoas dos estados de Pernambuco, Paraíba e Ceará, segundo o Ministério da Integração Nacional.
Não há como negar, os estados nordestinos precisam urgentemente de projetos hídricos que venham combater a seca que assola a região há séculos, porém, o rio São Francisco não pode ser sacrificado a ponto de se tornar um rio em extinção dentro de, no máximo, 25 anos. Até porque existem algumas alternativas de abastecimento de água para estas regiões sem que seja preciso utilizar-se de um projeto nocivo à vida do rio e dos ribeirinhos.
“Um paciente que está agonizando na UTI não pode doar sangue porque abrevia sua morte”, dizem os ambientalistas que defendem o fim do projeto, oficialmente denominado pelo Governo Federal de "Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional".
Nesta obra, sob a responsabilidade do Ministério da Integração Nacional, está prevista a construção de mais de 700 quilômetros de canais de concreto em dois grandes eixos (norte e leste) ao longo do território de quatro estados (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte) para o desvio das águas do rio.
O Eixo Norte com 400 quilômetros de extensão levará água para os sertões de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, alimentando quatro rios, três sub-bacias do São Francisco (Brígida, Terra Nova e Pajeú) e mais dois açudes: Entre Montes e Chapéu. O ponto de captação de águas será próximo à cidade de Cabrobó (PE).
O Eixo Leste percorrerá uma distância de aproximadamente 220 quilômetros, partindo da Barragem de Itaparica (PE) até alcançar o Rio Paraíba (PB), abastecendo o agreste desses dois estados.
Ao longo do caminho, o projeto prevê a construção de nove estações de bombeamento de água. E tempo depois ventilaram a possibilidade do chamado eixo sul, abrangendo a Bahia e Sergipe e eixo oeste, no Piauí.
Teoricamente, o projeto irrigará a região Nordeste e semiárida do Brasil. O principal argumento da polêmica dá-se, sobretudo, pela destinação do uso da água. Os críticos do projeto questionam que a água será retirada de regiões onde a demanda por água para uso humano e dessedentação animal é maior que a demanda na região de destino e que a finalidade última da transposição é disponibilizar água para a agroindústria e a carcinicultura, estando incluída a criação de camarões em viveiros.
Contudo, apesar da controvérsia, tais finalidades são destacadas como positivas no Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) em razão da consequente geração de emprego e renda, fato este que continua gerando duras críticas de ambientalistas contra os órgãos ambientais que, na opinião dos defensores do meio ambiente, são coniventes com a elaboração de relatórios mascarados de inverdades com o objetivo de burlar a opinião pública.
Para o ambientalista Jackson Borges de Lima, ele que é o fundador e presidente do Museu Ambiental Casa do Velho Chico, as consequências da transposição do rio São Francisco são preocupantes e constam claramente no Relatório de Impacto Ambiental, sendo as principais: tensões e riscos sociais durante a fase de obras; modificação do regime fluvial e ruptura de relações sociocomunitárias; modificação da composição das comunidades biológicas aquáticas nativas das bacias receptoras; risco de interferência com o patrimônio cultural; perda e fragmentação de cerca de 430 hectares de áreas com vegetação nativa e de habitats de fauna terrestre (perda de fauna e flora); risco da introdução de espécies de peixes potencialmente daninhas ao homem nas bacias receptoras; além de outros gravíssimos problemas.
Este ambientalista alertou, ainda, para um fenômeno interessante que vem ocorrendo na Bacia do São Francisco. Segundo ele, estão sumindo 80 metros cúbicos de água entre São Romão e São Francisco, em Minas Gerais. Estudiosos acreditam que esta quantidade de água provavelmente esteja indo para algum aquífero, em razão do aquecimento global.
O desaparecimento desta quantidade de água é alvo de preocupação em razão da grande crise hídrica que atinge os rios brasileiros, pois a atual vazão do rio São Francisco é de apenas 800 m³ e somente chega 300 m³ à Barragem de Sobradinho e, estudos já confirmam a tendência é piorar
Na opinião do ambientalista Carlos Eduardo Ribeiro Júnior, membro da Sociedade Socioambiental Canoa de Tolda, o projeto de Transposição significa o tiro de misericórdia no Velho Chico. Ele se diz indignado com a apatia dos governantes a níveis federal, estadual e municipal, pois estes cruzam os braços, fecham os olhos e nada fazem para impedir a morte do rio São Francisco.
A crítica deste ambientalista, que é responsável pela criação da RMO - Reserva Mato da Onça, no município de Pão de Açúcar, estende-se, também, à classe política: senadores, deputados, vereadores e outros representantes de órgãos que estão camuflados de defensores do Velho Chico, mas, na verdade, eles não passam de representantes “chapa branca”, que defendem os interesses do governo.
Este ambientalista, que possui uma vasta experiência na luta em defesa do Velho Chico, juntou recursos possíveis e comprou uma área de terra, onde, desde 2014, funciona a Reserva com seu conjunto de propostas, uma tentativa de reação ao quadro de risco de desaparecimento definitivo de muitas espécies da flora e da fauna do semiárido do Baixo São Francisco.
Segundo, ainda, Carlos Eduardo Ribeiro, do pouco que ainda resta: uma espécie extinta está perdida definitivamente, a um custo incalculável para o patrimônio de recursos naturais não só da região.
“Aqui na Reserva do Mato da Onça, espécies são reunidas e protegidas na Unidade de Conservação para a preservação da biodiversidade das caatingas do Baixo São Francisco, sendo esta uma forma real de devolver as matas ciliares para a vida do Velho Chico”, disse o revolucionário ambientalista.
Estudos mostram que o São Francisco é a bacia hidrográfica mais importante do nordeste brasileiro. Ao longo de décadas, já sofreu intervenções que prejudicam o seu equilíbrio natural e que são responsáveis pelo desmatamento de cerca de 96% de suas matas ciliares (localizadas nas margens do rio) e pela remoção de mais de 150 mil pessoas para a construção de hidrelétricas e barragens.
Para a transposição do Velho Chico se concretizar, muitas famílias rurais e aproximadamente de 33 tribos indígenas, sobretudo das etnias Truká e Pipipã precisarão deixar suas terras. Estima-se que cerca de 8 mil índios serão impactados diretamente. Além disso, há outros 44 impactos negativos listados pelo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA).
Alguns desses tópicos já estão sendo constatados e, ainda segundo o relatório, há risco de redução de biodiversidade e perda de aproximadamente 4 mil hectares de terras com potencial para a agricultura. Mais do que resolver a questão da seca no nordeste, a transposição do rio São Francisco gera dúvidas, riscos e perdas irreversíveis ao ecossistema e às comunidades tradicionais.
Para quem não conhece a história e a vida do rio São Francisco, ao contemplar uma quilométrica faixa de areia, conhecida como praia de água doce, a pessoa logo imagina estar diante de uma dádiva do Criador, um belo presente da natureza. Jamais pensa que essas extensas praias significam o avançado processo de metástase do Velho Chico, cuja enfermidade crônica pode ser combatida com o único remédio eficaz existente: a revitalização, feita de forma responsável, organizada e abrangente.
Transposição de águas ou de propinas?
A Polícia Federal (PF) deflagrou, em dezembro do ano passado, a operação Vidas Secas – Sinhá Vitória, para prender suspeitos de participar de um esquema de superfaturamento das obras para a transposição do Rio São Francisco.
Segundo as investigações, empresários do consórcio OAS/Galvão/Barbosa Melo/Coesa usaram empresas de fachada para desviar mais de R$ 200 milhões das verbas públicas destinadas às obras, no trecho que vai do agreste de Pernambuco à Paraíba. O consórcio cuidava de dois dos 14 lotes envolvidos na transposição do rio.
Os contratos investigados até o momento ultrapassam R$ 680 milhões. Ainda de acordo com a PF, algumas empresas ligadas à organização estariam em nome do doleiro Alberto Youssef e do lobista Adir Assad, investigados na Operação Lava Jato.
Estas informações fortalecem ainda mais a tese dos defensores do rio, que pedem o embargo deste famigerado projeto e dizem que a obra vem sendo executada com o objetivo principal desviar recursos e transpor propinas para políticos e empresários mergulhados em escândalos de corrupção neste País, pois o imoral e escandalosos superfaturamento em preços tornou-se uma prática rotineira daqueles que metem a mão descaradamente no dinheiro público, embora sob os olhares desaprovadores do TCU e MPF.
Para o bem dos ribeirinhos, a conclusão da obra de transposição estava originalmente planejada para 2012, mas atrasos mudaram a data prevista para 2016, coisa que também não irá acontecer, embora o governo federal continue apostando na agilização do prazo para entregar da obra.
Enquanto isso, uma gigantesca tempestade de escândalos de rapinagem de dinheiro público sacode o País através da mídia, inclusive mencionando as obras de transposição como uma das grandes fontes de corrupção, motivo suficiente para ser embargada pela Justiça Federal, porém, é preciso que a Justiça seja provocada.
Espera-se agora que as autoridades competentes da Pátria do Propinoduto despertem para a triste realidade vivida pelo rio São Francisco e ouçam o pedido agonizante de socorro do Velho Chico, transmitido pela televisão brasileira através da novela Velho Chico, da rede Globo – porque alguns documentários já foram exibidos, a exemplo do “Na Veia do Rio”, produzido pela Sociedade Socioambiental Canoa de Tolda, além de várias reportagens destacadas em programas de telejornalismo, porém, não conseguiram sensibilizar o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto que continuam cegos e surdos.
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